segunda-feira, abril 05, 2010

UM PESSOA

Guardei como se fosse uma relíquia a imagem de um mineiro que, num pequeno teatro de S. Paulo, se metamorfoseava de Fernando Pessoa. Ele próprio de chamava Fernando e, por um estranho desígnio do destino, tinha feições muito semelhantes às do poeta português. Mineiro! Aquele que trabalha em minas… Ou, noutro sentido da palavra, o natural do estado de Minas Gerais, no Brasil, talvez o mais português dos estados brasileiros. No caso daquele actor, os dois sentido se conjugavam: ele tanto era natural de Minas, como era um mineiro, se considerarmos, o que parece razoável, que a obra de Fernando Pessoa é uma mina de riquezas infindáveis. Mineiro em mais do que um sentido, o Fernando vivia na sombra subterrânea, em busca de uma luz que o ultrapassava maior que ele… Como Pessoa, era um desconhecido de si mesmo, extasiando-se na fruição de uma plenitude luminosa que pressentia mas que estava fora do seu alcance. Quem, humano, pode realmente. Quem, humano, pode realmente captar a totalidade de si mesmo e do universo?
Defronte do palco, os espectadores observavam aquele espectadores observavam aquele espectáculo feito de sombras: a do poeta original, e ado actor que o imitava. Toda a luz era ilusória, no drama de ser humano e de não se poder possuir, em cada momento, senão fragmentos de si próprio. O actor declamava poemas dos heterónimos pessoanos, punha sucessivas máscaras, assumia diferentes posturas perante a vida, ora era um pastor quase analfabeto, um mestre que vivia em harmonia com a natureza, ora era um médico com uma vasta cultura clássica que escrevia odes. Ao viajar por uma multidão de seres, ele não era ninguém, despojava-se de si próprio, era apenas um corpo que ia dando alojamento a diferentes espíritos e modos de ser, de estar no mundo – como um recipiente que vai recebendo as mais variadas bebidas, os mais diversos vinhos.
A certa altura, com a sala envolta em sombras, pareceu-me que o Fernando estava inebriado, por acolher tanta diversidade humana. O assumir de diferentes «máscaras» fazia-o esquecer-se de si mesmo, do peso do seu próprio corpo, e havia nele uma leveza que o elevava, que o fazia viajar pelos mundos astrais. Mais do que um mineiro, transformava-se num artista, num ser alado, para assumir diferentes humanidades para não ser de uma região, nem de um país, para se tornar universal. O português do Brasil, com que declamava os poemas dos heterónimos de Pessoa, e os do próprio Pessoa, dava ainda mais brilho e suavidade à mensagem poética que transmitia, repleta de pepitas de ouro, de diamantes, de relíquias tiradas ao subsolo da
alma humana. Cada sílaba era pronunciada com uma clareza cristalina, as vogais abriam-se como flores na Primavera, a paixão do actor derramava-se pelos versos sucessivos que ele conhecia de cor, como se tivesse nascido com eles e fizessem parte da sua alma. A parecença física com Pessoa impressionava-me, fez-me pensar que, de certo modo, o poeta português, que nunca esteve no Brasil, vivia sobre aquele palco, ressuscitado de uma morte que é sempre aparente para quem crê no poder da fantasia. A vida, mais uma vez, triunfava sobre as sombras da morte, mas para isso ele tinha tido de morrer, depois de uma entrega total, sem limites, à Literatura e às profundezas da alma humana.
Um momento alto do espectáculo foi quando Fernando, o mineiro - se fosse brasileiro, estou em crer que o introspectivo Pessoa seria de Minas – se pôs a declamar poemas da Mensagem, a obra épica em que o poeta português, à semelhança do que Camões fez n’Os Lusíadas, exalta a identidade lusa, ligada aos Descobrimentos. Mas, segundo o poeta, depois da realização material, através do mar, veio a crise de identidade, o nevoeiro, faltando agora cumprir-se o império espiritual, um império de fraternidade… O actor tinha interiorizada a Mensagem e, ao declamar, vários dos seus poemas, foi rei fundador de Portugal, rei lavrador, profeta, navegador, mar português, D. Sebastião… Vendo-o, a este actor mineiro, observei como se metamorfoseou no próprio Portugal, com sotaque do Brasil, e como encarnava perfeitamente a célebre frase de Bernardo Soares «A minha Pátria é a Língua Portuguesa»… As sombras envolviam-no, e criou-se um clima de suspense, terminando pouco depois o espectáculo com a espera de um império de fraternidade universal, o maior dos tesouros, aquele por que anseiam todos os homens de boa vontade…
No fim, caída a cortina, quis ir cumprimentar aquele actor que se tinha exibido num pequeno teatro de São Paulo, não longe da rua da Consolação – que na verdade mais é uma avenida -, para o felicitar da sua actuação. Fora do palco, ele tinha decrescido de tamanho, e havia nele uma espécie de saudade do mundo vasto por onde tinha viajado. Até hoje sinto-o como um irmão, porque partilho com ele a mesma saudade, de um império que perseguimos incessantemente – um império existente no subsolo infinito de riquezas da alma humana, lembrando-nos um tempo em que todos vivíamos irmanados pelo mesmo mistério de existir…

2º Prémio – Modalidade Prosa - Concurso do Elos Internacional 50º Aniversário do Elismo
Autor: Jorge Manuel da Silva Costa Rodrigues* – Oeiras
* Membro do Elos Clube de Lisboa