sábado, abril 10, 2010

O FADO DA SEVERA

Por fim, a noite caíra, pondo termo a um pesado dia de estio, naquele quente Agosto de 1835.
Para a grande maioria dos assalariados, chegara a hora do merecido descanso diário.
Depois do jantar, poucos eram os que permaneciam nas suas quentes casas, que libertavam, agora, o calor acumulado ao longo do sufocante dia.
Muitos optavam por passear, aproveitando a fresquidão da noite. Outros agrupavam-se pelas tascas e cafés, fazendo-os fervilhar de vida. Por vezes, a polícia tinha de intervir, para manter a ordem, pois havia sempre alguns ânimos mais exaltados que, rapidamente, criavam e faziam alastrar a confusão e a desordem.
Na “Tasca da ti’Júlia”, os clientes amontoavam-se no pequeno estabelecimento, junto ao balcão e em volta de pequenas mesas, esquecidos do calor e do odor acidificado que ali se fazia sentir. Entre pevides, amendoins, bifanas, copos de vinho e canecas de cerveja, o tempo ia avançando. Soaram as nove badaladas, no sino da igreja. O ruído das vozes, que se elevava naquele local, foi subitamente interrompido pela voz possante do Chico, o dono do estabelecimento.
- Senhores e senhoras, a vossa atenção. – O olhar de águia do Chico percorreu a assistência, enquanto apagava a beata do cigarro, que fumara, num improvisado cinzeiro. – Vamos, de seguida, passar a ouvir a voz de ouro da Mouraria, aqui na “Tasca da ti’Júlia”, a voz exuberante de Maria Severa. Portanto, peço-vos silêncio, que se vai cantar o fado!
Uma salva de palmas e um burburinho percorreram a assistência, em reacção à declaração do Chico “pançudo”. Todas as atenções se voltaram para o pequeno palco improvisado, situado do lado direito do balcão. Aí, sentado numa cadeira, tangendo uma guitarra portuguesa, estava o acompanhante da fadista. Esta, estava de pé, olhando a assistência. Não fez qualquer discurso introdutório. Baixou a cabeça e tornou a levantá-la, num mudo e rápido cumprimento aos seus admiradores. Fez um aceno ao guitarrista. Os acordes, que inicialmente soavam de forma solta e espaçada, saltaram subitamente da guitarra, fluindo num imenso caudal, transformados numa melodia inebriante, tocada pelas habilidosas mãos do guitarrista.
Maria Severa começou a cantar.
A sua voz penetrou no âmago dos ouvintes. A letra falava sobre a vida, sobre a morte, sobre o amor. A voz da fadista e o gemer da guitarra enchiam completamente os
poucos espaços livres da sala e tornavam aquele local ainda mais acanhado. A comoção reinava naquele ambiente.
Uma salva de palmas acolheu o fim da canção. Foram feitos emocionados pedidos para a fadista bisar. Esta não os desiludiu. Cantou mais uma canção e mais outra ainda. Um gigantesco maremoto, todo feito de palmas e ovações, inundou a tasca, enquanto a fadista se retirava, agradecendo os elogios assim recebidos.
Voltou, passado um curto espaço de tempo, após se ter ido refrescar. Não se dirigiu para o palco, mas para o balcão.
- Chico, - pediu - a minha bebida, por favor.
- Aqui a tens, Maria Severa. – Respondeu o barrigudo dono da tasca, passando-lhe um copo de vinho branco.
Depois de ter bebido o conteúdo do copo em três pequenos tragos, Severa sentou-se, com alguns amigos, numa das mesas. Sempre bem-disposta, riu e divertiu-se com o grupo, recebendo sempre muito bem todos quantos lhe vinham apresentar os cumprimentos e felicitações pela actuação.
Um jornalista, de um conhecido diário da capital, que tinha ali jantado e assistido ao espectáculo, aproximou-se dela.
- Boa noite, menina. – Cumprimentou, apresentando-se de seguida: – Sou jornalista e gostaria de a entrevistar.
Maria Severa assentiu com a cabeça. Um simpático sorriso bailava-lhe nos carnudos lábios, fazendo-a ainda mais bela.
- Diga-me, canta há muito tempo?
- Só desde há um mês e, só aqui, na “Tasca da ti’Júlia”.
- Pretende fazer carreira?
- Se Deus quiser, pretendo…
- Sei que teve uma infância e juventude difícil, mas vendo-a a cantar assim e tão bem disposta… O que pode dizer aos nossos leitores sobre isso?
- Sabe? – Disse, respondendo ao jornalista – eu canto o fado. O fado é dor, é saudade, é amor. É a vida e a amizade…
- Claro – retorquiu o jornalista – e a sua voz é excelente. Mas, quando você canta, a sua voz toca na alma de cada indivíduo que aqui a ouve!... Qual é o seu segredo?
- Olhe… - replicou, tentando explicar da melhor forma – a música é importante e a voz de quem canta, também. Mas, são as palavras ditas na nossa magnífica língua que fazem toda a diferença.
- Diz-me que se o fado for cantado noutra língua, não produz o toque mágico na alma de quem escuta?
- Exactamente. A nossa língua foi enaltecida por Camões e outros grandes poetas. Foi levada a outros povos pelos descobrimentos e pelos nossos emigrantes. É um elo de ligação de povos e culturas. Muitos a falam e cantam. Pois, esta língua tem magia nas palavras: tem entoações, expressões, sonoridades que noutras línguas não existem.
- Compreendo. Mas, como falou em emigrantes, diga-me: está a pensar ir cantar para o estrangeiro?
Severa abanou negativamente a cabeça, enquanto acrescentava:
- Não. A minha vida é aqui na Mouraria, em Lisboa. Mas, fixe o que lhe digo: depois de mim, existirão fadistas que hão-de levar a língua Portuguesa a outros povos e nações. E, serão aplaudidos, de pé, por multidões, que apesar de não compreenderem esta língua, se sentirão tocadas pela magia, pelo poder das palavras.
- Obrigado pelas suas respostas a esta entrevista – agradeceu o jornalista, dando por terminado o seu trabalho. Questionou: - quer acrescentar mais alguma coisa?
- Quero! Dê-me um segundo… – disse para o jornalista. Levantou-se e gritou para o seu guitarrista: - Ó Hermínio, chega aqui e trás o instrumento!
Hermínio aproximou-se e olhou-a interrogativamente.
- Acompanha-me, com uns acordes! – Disse Severa, colocando a sua perna esquerda dobrada e apoiada sobre a trave da cadeira de Hermínio, com a comprida e rodada saia caindo sobre ela.
Fez-se silêncio na ruidosa sala.
Severa começou a cantar, de improviso:
- Tristezas não pagam dívidas, nem dão paz ao coração / Para me alegrar, canto o fado com comoção. / Quando a voz da Severa, o fado começa a cantar, / há já muito que a alma da Severa está a trinar. / Quando a voz da Severa faz vibrar o salão / já há muito que o fado faz vibrar o seu coração!/ És filha de Portugal / E Mãe de muitas Nações / És a Língua Universal / Que é cantada por milhões.”


3º Prémio – Modalidade Prosa - Concurso do Elos Internacional 50º Aniversário do Elismo
Autor: João Manuel da Silva Rogaciano – Alverca