quinta-feira, novembro 17, 2005

O MAR SEM FIM É PORTUGUÊS - POR MARIANA FERNANDES


O MAR SEM FIM É PORTUGUÊS

Em todas as histórias da Ciência e Filosofia que conheço, os séculos XV e XVI quase não são referidos e poucas linhas são dedicadas aos Descobrimentos Portugueses. Por isso, decidi estudar esta época, dos pontos de vista cientifico e filosófico. O resultado dessa pesquisa foi o livro "A importância dos Descobrimentos Portugueses na gênese da Ciência e da Filosofia Modernas", no qual defendo a idéia de que D. João de Castro foi o fundador da Ciência Moderna (não estou dizendo contemporânea) e o criador do Método Cientifico ou Método Experimental.
Como se sabe, a sociedade medieval era uma sociedade teocêntrica, não sendo possível pensar-se numa ciência no sentido moderno na época, porque esta pressupunha a libertação do conhecimento da Teologia. A ruptura com o pensamento religioso foi potencializada por diversos factores, entre eles destaco a criação das universidades e os Descobrimentos Portugueses.
Considero que, com a conquista de Ceuta, em 1415, terminava a IdadeMédia na Europa e Portugal preparava a eclosão da Ciência e daFilosofia Modernas.
Dentre as figuras directamente ligadas aos Descobrimentos refiro oInfante D. Henrique, que, como Protector dos Estudos de Portugal, adquiriu umas casas para aí se instalar o Estudo Geral, porque dignificaria a universidade e permitiria "nelas haver de ler de todas as ciências", o que está ligado à reforma do plano de estudos da universidade portuguesa, uma das mais antigas da Europa.
Refiro ainda o rei D. João II que, logo que subiu ao trono, traçou o rumo que levaria os Descobrimentos Portugueses ao seu expoente máximo: chegar à India contornando a Àfrica e dominar todos os mares e o comércio marítimo. Para atingir estes objectivos, impôs e reforçou nos descobrimentos o carácter de empreendimento moderno que o Infante D.Henrique lhes imprimira desde o início.
Foram homens avançados em relação ao seu tempo, modernos em toda a acepção do termo. Essa modernidade aparece na vontade do Infante de "haver de tudo manifesta certeza", de ter a certeza de tudo, de que tudo fosse experimentado e registado, o que permitiu que se colocasse em confronto as duas mentalidades que se impunham nesta época de transição da sociedade medieval para a sociedade moderna.
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Cada armada levava um escrivão que registava tudo o que se passava durante a viagem. Com o tempo o diário de bordo foi evoluindo e transformando-se num roteiro, como no caso do roteiro "Esmeraldo de Situ Orbis", de Duarte Pacheco Pereira, onde foram relatados os acidentes das costas; a profundidade das águas nos portos; a amplitude das marés; os locais onde recolher água, alimentos e lenha; o carácter das pessoas; a possibilidade de estabelecerem relações comerciais; as coisas belas que os maravilhavam etc.

E tudo em português para, segundo o próprio autor, o livro ser acessível a todas as pessoas, mesmo as menos letradas. O uso do latim, mesmo numa obra científica, não condizia com a modernidade dos Descobrimentos Portugueses nem com a globalização do conhecimento que, com eles, se iniciava.
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Pedro Nunes foi o responsável pela preparação teórica de muitos pilotos e navegadores, como D. João de Castro, por exemplo. Estabeleceu uma relação dialéctica entre o seu saber, teórico, e o dos pilotos, prático: preparava e inventava instrumentos que os pilotos testavam eque ele melhorava a partir das informações que lhe traziam, no regresso das viagens.
Um dos grandes problemas que os navegadores daquela época debatiam era o da localização dos navios em alto mar, que pressupunha que soubessem determinar rigorosamente os valores da latitude e da longitude de um lugar. Sabiam calcular a latitude com uma aproximação razoável para a época, a partir da altura duma estrela ou do Sol, servindo-se de aparelhos relativamente simples como o sextante, o astrolábio, etc. O problema da determinação da longitude é mais complexo, porque exige que se saiba medir rigorosamente o tempo e que se disponha de um referencial criteriosamente escolhido: um meridiano.
Para resolver as dificuldades encontradas na determinação da longitude por falta de um referencial, Pedro Nunes, a partir de critérios rigorosamente científicos, escolheu para referência o Meridiano de Lisboa, em relação ao qual as cartas de marear passaram a ser desenhadas, promovendo, deste modo, a primeira globalização da cartografia. No entanto, logo que Portugal perdeu o domínio dos mares e este passou para a Inglaterra, o rei inglês substituiu o Meridiano de Lisboa pelo Meridiano de Greenwich, que ainda hoje se usa como referencial para a longitude.
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Toda a obra de Pedro Nunes mostra que os Descobrimentos Portugueses não foram realizados ao acaso: os marinheiros portugueses eram bem ensinados e providos de instrumentos e de regras de Astronomia e de Geometria; além disso, as cartas náuticas portuguesas eram avançadíssimas em relação às antigas embora ainda fossem distorcidas.
D. João de Castro fez três viagens à India e várias viagens peloOriente. Todas foram verdadeiras viagens científicas e o roteiro de cada uma delas é o relatório da missão correspondente. Os trabalhos de D. João Castro estendem-se por domínios vastíssimos:estudou a questão da "variação das agulhas" e do "desvio das agulhas", descobriu o magnetismo local, verificou que as linhas isogónicas não coincidem com os meridianos, verificou que as propriedades magnéticas das agulhas não dependiam do aço de que eram feitas nem das pedras com que eram magnetizadas, lançando as bases do Magnetismo como ciência; descobriu a relatividade do movimento e aplicou este conceito a determinações quantitativas que envolvem a relação que hoje é conhecida como relatividade de Galileu; criou processos de investigação e de medição que ainda hoje se usam; estudou o regime dos ventos; identificou as correntes marítimas tal como ainda hoje são caracterizadas; lançou as bases das relações entre as marés e a Lua e o Sol; preocupou-se com a medição do tempo; mediu e corrigiu os valores da latitude de muitos lugares; deu uma interpretação correcta da "cor das águas" do mar Vermelho; teve a noção de baixo e de cima; para interpretar a existência dos antípodas e a queda dos corpos serviu-se de argumentos que estão na linha directa dos actuais conceitos ligados a "campo gravitacional terrestre"; teve a intuição de uma analogia entre a força gravitacional, a força electrostática e a força magnética; admitiu a existência de estrelas não visíveis da terra por estarem muitíssimo distantes desta; usava os conceitos de erros para fazer as experiências e corrigir os valores determinados experimentalmente; introduziu sistemáticamente a componente quantitativa no registo dos factos observados, atitude esta que é uma vertente fundamental na ciência moderna e, principalmente, para tudo investigava uma causa, procurando a compreensão racional dos fenómenos, valorizando o binômio teoria-prática, preparando o mundo para eclosão do Racionalismo e do Experimentalismo - iniciava-se aCiência Moderna.
Desde que equacionava um problema até que o resolvia D. João de Castro aplicava uma série de operações - observação, recolhimento de dados, formulação de hipóteses e conclusão - que definem a atitude que os teóricos, mais tarde, classificaram como Método Experimental ou Método Científico. Por isso considero que foi o criador deste método.
Do ponto de vista filosófico os conhecimentos adquiridos e o método aplicado por D. João de Castro modificaram radicalmente a atitude doHomem perante Deus, perante a Natureza e perante o próprio Homem -iniciava-se a Filosofia Moderna.
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Os marinheiros portugueses dos séculos XV e XVI lançaram as bases da antropologia cultural, fizeram as primeiras globalizações da metereologia, do comércio, da economia, da cultura, do conhecimento; deram as primeiras indicações sobre migrações de animais; organizaram rudimentos de dicionários; foram os primeiros a usar os citrinos no combate ao escorbuto e que dizimava as tripulações quando apanhavam as calmarias; defenderam relações amistosas com os povos com quais contactavam etc.
Os Descobrimentos Portugueses renovaram a literatura tanto na forma como nos conteúdos e nas palavras de que são exemplos as "Décadas" de João de Barros, "Os Lusíadas" de Luís de Camões, as "Lendas da Índia" de Gaspar Correia, os roteiros, a "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto que a revista Time há uns dez anos, talvez menos, considerou um dos quatro livros de viagens mais notáveis de todos os tempos.
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Penso ter mostrado não só que os navegadores portugueses dos séculosXV e XVI foram os fundadores da Ciência e da Filosofia Modernas, mas ainda que todos os nossos povos estão ligados, também, por meio desta obra imensa.
Mariana Teles Antunes Pais Dias Fernandes*
* -Licenciada em Ciências Fisico-Quimicas pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em 1958, e em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1978.
-Membro do Elos Clube de Faro
-Autora do Livro "A Importância dos Descobrimentos Portugueses na Génese da Ciência e da Filosofia Modernas" edição Câmara Municipal de Faro e Câmara Municipal de Albufeira, 1ª Edição Junho 2003
-Outros trabalhos publicados:
"Cartas de D. João de Castro" - Prémio Descobrir os Descobridores 1997 - in Livro do Livro, Roma Editora;
"A importância da primeira viagem de Vasco da Gama à India" - Prémio Descobrir os Descobridores 1998 - in Livro do Livro, Roma Editora