sábado, abril 10, 2010

Hino é a definição pela música do carácter de um povo

Não sei de onde chego nem para onde vou. Sou a partitura perdida, o papel abandonado, o sorriso desenhado repetidamente sem nunca se encontrar na folha de papel.
Subitamente as minhas mãos que se agitam, os meus dedos a mover-se como se diante de mim ainda estivesse o piano onde tocámos tanta vida e construímos tantos sonhos.
Sabes... só hoje entendi que nunca soube tocar piano. Que as minhas mãos não foram mais que instintos do coração, movimentos da alma, sorrisos de dentro do mais profundo de mim.
Eu não sabia tocar piano, eu sabia tocar profundamente nesse coração gelado pelo tempo, plena mágoa e pela dor.
Hoje, sento-me sozinha ao piano e as mãos são analfabetas nessas teclas cansadas do meu olhar ingénuo e perdido.
Mas, os sons da nossa pátria, esses continuam bem patentes dentro de mim, como ecos eruditos na escuridão da noite, como pedaços daquilo que somos e do que espalhámos pelo mundo fora.
Afinal onde estão as partituras da nossa pátria, o amor da nossa nação, a coragem de todos aqueles que desbravaram o mundo com vontade de trazê-lo na palma da mão ? Onde ?
Perdidas pela casa onde já não existo, onde os meus passos se perdem na tristeza de viver sem ti? Onde ?
Escondidas por detrás desses muros altos a que chamamos esquecimento? Para além dessa fronteira de estradas e caminhos que nunca percorri?
Oxalá pudesse ir buscá-las, reaprender a tocar essa melodia tantas vezes repetida no silêncio inócuo dos nossos dias.
Mas não posso. Tu sabes que não posso.
Porque ainda gritas lá longe,
- Fica.
Eu fico, não te preocupes, eu fico com a tristeza semeada no lugar do amor, com lago que bate mas não é coração, com algo que sente e não é alma.
E a tua voz lá no fundo, a tua voz a contar-me histórias do tempo em que os meninos corriam descalços pelas ruas e tinham as mãos calejadas pelo trabalho.
A tua voz que cantava todos os feitos com o sorriso de quem conheceu o mundo pelas próprias mãos, de quem alimentou os sonhos dos famintos e dormiu na dura cama do desespero.
Mas tu venceste, levaste na voz a música do teu povo, a alegria de cantar a glória sem pedir nada em troca. Porque, afinal,eras exactamente como a partitura dessa música que cantavas: leve, simples e audaz.
Hoje, a minha caligrafia é o traço da saudade que me atravessa o peito, o sorriso maroto que me foge por entre os lábios.
E tu continuarás aqui. Os teus ossos em cada letra, as tuas expressões em cada frase, os teus gestos em cada parágrafo roubado ao tempo.
Cantaria, se a voz não me falhasse, se a saudade não me entorpecesse todas as partes do corpo, impedindo-me de ser mais mais do que aquilo que sou.
Não te preocupes, não te deixarei morrer dentro de nós, não permitirei que as tuas palavras se percam e os nossos feitos caiam em esquecimento, tal como folhas de árvores num Outono cruel.
Por isso te recordo, porque por vezes precisamos de escavar nas memórias dolorosas, como se isso sarasse as feridas que temos no peito, como se isso nos fizesse esquecer por momentos quem somos e o que esperam de nós. Na verdade, é natural preferir ficar ferido a ter que matar.
No silêncio da minha casa, apenas habita essa melodia que trouxeste no peito e semeaste em cada parte de mim.
Sabes... ainda sou a combatente em busca de redenção, à procura do sonho que tarda em chegar, em busca das horas que me fogem vagabundas por entre aos dedos das mãos.
A minha memória ainda é essa caravela de ambições comandada audazmente pelo trilho do desconhecido. É nela que me perco, é nela que morro e volto a nascer, é nela que caio e em ergo, é nela que sou e que sinto.
Porque tenho dentro de mim todos os sonhos do mundo, todas as melodias cantadas em tempos de glória, todas as partituras esquecidas em terras viciosas e todo o orgulho da bandeira que honrámos pouco a pouco.
Escreventes hoje, sonhadores de amanhã, é isto que somos, pequenas recordações de nós mesmos e de todos aqueles que nos constituem.
Por isso canto a nossa história, emanando de todas as partes do corpo essa luz que me travessa, esses sons que me tocam, esses traços breves do carácter deste nosso povo lusitano.
Afinal, tu bem sabes, que quando se sabe viver, sabe-se morrer.


Isa Mestre

1º Prémio - Concurso Literário Do Elos Clube de Faro - Jovens Autores 2007