sábado, setembro 17, 2005

PRESENÇA DOS JUDEUS EM FARO POR LIBERTÁRIO DOS SANTOS VIEGAS


PRESENÇA DOS JUDEUS EM FARO

Para quem nos visita pela primeira vez parece oportuno apresentar,
ainda que de forma sucinta, a cidade.

Para isso começamos por dizer que ela nasceu como Ossonoba no morro
onde se localizaram sucessivamente a igreja visigótica, o fórum romano,
a mesquita árabe e, depois da conquista aos mouros (28 de Março de 1249),
a Igreja Matriz de Santa Maria (actual Sé), e que o seu aparecimento é
associado a um entreposto que os fenícios aqui estabeleceram depois de,
por volta 1000 a.C., terem fundado Cádis e incrementado as suas relações
com esta região.

A construção do templo actual demorou desde 1251, data em que o Arcebispo
de Braga a encomendou a Frei Pelágio e Frei Pedro, até cerca de 1270,
ano em que o Rei concedeu o seu padroado à Ordem de S. Tiago.

Por esta cidade, que já era importante no séc. VI a.C., passaram gentes
muito díspares - cónios, fenícios, romanos, visigodos e árabes - que têm
a ver connosco e com a nossa cultura tal como os judeus, que já cá estavam
antes dos romanos, e os negros que vieram como escravos nas caravelas do
Infante...

Estamos numa cidade moldada ao sabor dos tempos e dos contratempos - sismos
de 1504, 1531,1587, 1719, 1722 e 1755, a invasão do conde de Essex, em 1596
e o furacão de 1757, embora nada deva ter suplantado a ignorância e a ganância
de alguns homens.

O espaço onde Ossonoba nasceu, e que é costume designar por VILA-A-DENTRO,
está rodeado por muralhas que, segundo Levi-Provençal, foram mandadas construir
por Bakr ben Yahya ben Bakr, por volta do ano 900, pelo que eram já antigas
quando aqui chegaram D. Afonso III, D. Paio Peres Corrêa - Mestre de Santiago,
Pedro Estaço e João de Boim e demais cavaleiros a conquistar a cidade.

Quando falamos dos povos que andaram por aqui no passado geralmente não referimos
os judeus, apesar de, segundo M. Viegas Guerreiro, eles já cá estarem antes dos
romanos, como consequência da diáspora do séc. I, quando a Palestina passou a
província imperial romana.

Na Península os judeus são tão antigos que ajudaram os árabes a destroçar os
visigodos e, cinco séculos depois, terão ajudado os portugueses a correr com eles.

Aquando da conquista a sua presença já era tão importante que Afonso III os
citou (indirectamente embora) no foral dos mouros forros - "...que nenhum meu
cristão nem judeu tenham poder de fazer-vos mal nem força...".

E foi por reconhecer a importância da Comunidade que a cidade lhe dedicou o
espaço contíguo ao cemitério judaico, parecendo todavia adequado o tratamento
urbanístico da praça e a implantação de um monumento a recordar, por exemplo,
que foi em Faro que, por iniciativa do judeu Samuel Gacon, se editou o
"Pentateuco", o primeiro livro impresso em Portugal.

A comuna de Faro "terá sido sempre a mais distinta da região algarvia e uma
das mais notáveis do País, em todos os tempos", com muitos artesãos e muita
gente endinheirada, sendo frequentes no séc. XIV as ligações comerciais de
judeus e cristãos.

E já então aqui existia um cemitério judaico, provavelmente no Espaldão,
onde foi encontrada uma lápide dedicada a Joseph Dotomb (falecido em 1315),
que se supõe ter sido "um respeitável rabi de Faro, porventura o mais antigo
que se conhece (até agora)" .

Estudada por Monsenhor Pereira Boto, a lápide foi implantada em 1899 no
cemitério israelita, de onde, em 1944, foi levada para o Museu Luso-Hebraico
de Tomar num inqualificável desvio em que intervieram Samuel Schwarz, director
daquele museu, e Semtob Sequerra, figura destacada da comunidade farense.
Enfim, mais um roubo que ficou impune apesar dos protestos que suscitou por
parte dos Drs. Lyster Franco e Justino Bivar.

A prosperidade dos judeus farenses no séc. XV é atestada pelas muitas
cartas de contrato envolvendo artesãos, mercadores, rabis e cirurgiões e
pelas benesses reais a membros da comuna, como uma de 1446, em que o regente
D. Pedro nomeava Moisés Franco tabelião geral das comunas do Sul de Portugal,
o que nos dá conta da importância já então assumida por Faro - "o principal
fulcro da vida administrativa do Algarve, nas suas múltiplas relações com o
poder" .

Foi naquela época, em que também já eram citadas as comunas de Alvor, Lagos e
Portimão, que se editou o "Pentateuco", incunábulo de leitura essencial nas
cerimónias das sinagogas.

Acabado em 30 de Julho de 1487, "por ordem do nobre e alto Dom Samuel Gacon",
o livro tem 110 folhas de 270 x 205, está impresso a preto, a duas colunas
e o único exemplar conhecido encontra-se na biblioteca do Museu Britânico,
instituição que ofereceu um microfilme integral à Câmara de Faro, através do
saudoso Prof. Pinheiro e Rosa, dádiva que levava Alberto Iria a sugerir, em 1984,
a reprodução da obra, com o que pensava que o Município prestaria "um dos seus
mais altos serviços à cultura do Algarve" .

A iniciativa veio a caber ao Governo Civil, na passagem do quingentésimo
aniversário da publicação, e a responsabilidade científica do trabalho coube
aos Prof. Manuel Rodrigues e Cadafaz de Matos, das Univ. de Coimbra e Católica,
respectivamente.

A cidade pouco sabe sobre Samuel Gacon, cuja memória foi apenas evocada no
ex-libris da antiga Biblioteca Municipal João de Deus, por iniciativa do
dr. Moreira Júnior e Alberto de Souza. Assim, tem sido quase total o
esquecimento em relação a Samuel Gacon, de cuja oficina saiu ainda o Talmud,
constituído pelo "Tratado do Divórcio" e pelo "Tratado dos Juramentos", que é,
provavelmente, o décimo incunábulo impresso em Portugal, de que existem vários
exemplares (ainda que incompletos) nas Bibliotecas Nacional de Lisboa, da
Universidade de Leiden (Holanda) e do Seminário Teológico Judaico da América
(Nova Iorque) e na Colecção Eikan Adler (Londres). No Talmud, editado em 1492
(?), a identidade do editor (Dom Samuel Porteiro) suscitou dúvidas que Artur
Anselmo dissipou ao sugerir que a segunda denominação poderia apenas indicar
que, após a impressão do Pentateuco, terão sido atribuídas ao editor as funções
de "Porteiro", a quem cabia citar, penhorar e executar.

Samuel Gacon (ou Porteiro) terá sido um dos muitos judeus que, por volta de
1486, vieram para Portugal, onde a sua sorte era bem diferente da que afectava
a comunidade no país vizinho, onde, num só ano, a Inquisição, então implantada
pelos Reis "Católicos", supliciara milhares deles.

Terão sido judeus oriundos de Espanha, onde já se imprimia em Guadalajara
(1476) e em Hijar (1485), os introdutores da tipografia em Portugal.

Os judeus, apesar de uma certa hostilidade população restante, prosperaram nos
negócios mesmo depois da carta patente de Dezembro de 1496 em que D. Manuel I
os expulsava do País e em virtude da qual os que não o fizeram até 31 de
Outubro de 1497 foram forçadas a baptizar-se.

Assim, oficialmente (e só nesse sentido) deixaram de existir judeus em
Portugal, o que, como é óbvio, também aconteceu em Faro, onde, no local onde
estivera implantada a judiaria, se construiu o Convento de Nossa Senhora da
Assunção, actual Museu Infante D. Henrique.

De maneira visível e vindos sobretudo de Marrocos (Tanger, Tetuão e Mogador,
sobretudo) e de Gibraltar os judeus regressaram a partir de meados do séc.
XVIII, quando terminaram as distinções discriminatórias e já não existia o
Tribunal do Santo Ofício, e instalaram-se principalmente em Lisboa, Porto,
Faro e Ponta Delgada .

Segundo José Maria Abecassis, esta segunda presença judaica na capital
algarvia foi mais significativa durante o século XIX e as primeiras décadas
do XX.

No estudo em que participou sobre o cemitério israelita de Faro, J.
Abecassis referenciou cento e seis enterramentos (tantas as campas ali
existentes), embora só 71 tenham inscrição. Neste trabalho deve salientar-se
também a colaboração de Sam Levy, que copiou em hebraico todas as inscrições, e
do Ver. Abraham Assor, que as traduziu.

O cemitério, que data do ano 1878 da nossa era, foi implantado no Vale de Cães,
um baldio na actual Estrada da Penha, que pertencia ao marechal de campo Luís
Filipe Pereira do Carvalhal, a quem Joseph Sicsú, Moysés Sequerra e Samuel
Amram o adquiriram por setenta e dois mil réis (a escritura notarial foi
lavrada em 30 de Dezembro de 1851).

A comunidade judaica não deveria ser muito numerosa , pois em 1900 só existiam
em Portugal cerca de 500 judeus, 70% dos quais concentrados em Lisboa,
número que em 1912, com o reconhecimento oficial dos judeus, passaria para
perto dos dois mil.

A reduzida expressão numérica fica bem patente no estudo de J. Abecassis,
onde se constata que em 100 anos apenas se registaram 106 enterramentos
- o primeiro e o último foram os do Verº. Joseph Toledano (1838) e do
ancião Abraham Ruah (1932). Entre as 71 sepulturas que ostentam inscrição
encontramos as dos fundadores Samuel Amram (1880), Joseph Sicsú (1871) e
Mosés Sequerra (1877), a cujas famílias pertencem 37% das campas, o que
atesta bem da sua importância local (as restantes 45 sepulturas são de 29
outras famílias).

A importância da comunidade hebraica de Faro é também atestada pelo facto,
pouco frequente, de ter duas sinagogas; situavam-se nas ruas Manuel Belmarço
e Castilho e existiram até meados do século XX, época em que desapareceu
José Ruah, último judeu dessa época.

Outro índice da importância da comunidade judaica é a sua participação na
vida associativa local. No princípio do séc. XX encontramos, por exemplo,
vinte e sete judeus inscritos no Clube Farense, agremiação da alta
burguesia da cidade.

Só conseguimos apurar os nomes de 19. Pertenciam às famílias Sequerra (8),
Amram( 3), Ruah (3), Levy (2), Bensabat, Sicsú e Attias (com 1 elemento cada).

NOMES Nº. Sócio Ocupação
Sequerra, Joshua 13 Negociante
Sequerra, Salomão 75 Negociante
Sequerra, Aarão 119 Negociante
Sequerra, Jacob 195 Negociante
Sequerra, Samuel 310 Capitalista
Sequerra, Moysés 612
Sequerra, Elieser 665 Proprietário
Sequerra, Semtob 1023 Comerciante
Amram, Isaac 214 Negociante
Amram, Samuel 320 Negociante
Amram, Abraham 391 Proprietário
Ruah, Abraham 421 Negociante
Ruah, Jacob 785
Ruah, José 798
Levy, Saloman 346 Negociante
Levy, A. 376 Negociante
Bensabat, Joseph 291 Negociante
Sicsú, Jacob 81 Negociante
Attias, Jacob 120 Negociante

Uma última referência ao cemitério israelita de Faro para
dar nota de que a Fundação para a Restauração do Cemitério de Faro,
nascida nos Estados Unidos em 1984, promoveu a restauração e a
rededicação, em 1993, daquele importante "Imóvel de Interesse Público".

Nas cerimónias, que tiveram como anfitrião Isaac Bitton (Presidente da
Fundação), participaram altas individualidades, nomeadamente o
Presidente Mário Soares, D. Manuel Madureira Dias (Bispo do Algarve),
Cabrita Neto (Governador Civil) e Dr. João Botelheiro (Presidente da
Câmara de Faro).

Uma das principais cerimónias foi a plantação de dezoito árvores em
honra do Dr. Aristides de Sousa Mendes, pelo seu papel, enquanto cônsul
de Portugal em Bordéus, na salvação de milhares de judeus, aos quais
passou passaportes que lhes permitiu livrar-se dos nazis.

(apontamentos da intervenção de Libertário dos Santos Viegas no aniversário
do Elos Clube de Faro, em 14 de Novembro de 2004).

1 - Guerreiro, Manuel Viegas - "Judeus", Dicionário de História de
Portugal (vol. III), Livraria Figueirinhas, Porto, 1981, p.409;

2 - IRIA, Alberto - "Os Judeus no Algarve Medieval", Anais do Município
de Faro, vol. XIV (1984), p.59;

3 - idem, op. cit., p.117
4 - idem, op. cit., p.52;

5 - ANSELMO, Artur - As Origens da Imprensa em Portugal, INCM, Lisboa, 1981,
pp. 427 e 436-437;

6 - IRIA, Alberto - op. cit., p.69
7 - ROSA, José António Pinheiro - Anais do Município de Faro, vol. V
(1975), p. 143;
8 - GUERREIRO, Manuel Viegas - op. cit., p. 413;
9 - ABECASSIS, José Maria - "Genealogia Hebraica; Portugal - Séc. XIX
e XX", Anais do Município de Faro, vol. XV (1985), p.56;
10-MARQUES, A. H. de Oliveira - "Portugal da Monarquia para a República",
Nova História de Portugal, vol. XI (1991)p. 513;