domingo, dezembro 31, 2006

Conto de Natal - O Crepitar e as chipas por Arménio Vasconcelos

Naquele Natal

O crepitar e as chispas

O lume do raizame de oliveira crepitava sussurrante, em antagonismo com o vento invernio que assobiava.
Lá fora os cães, em matilha, ladravam continuamente a fantasmas ou por previsão de trovões que afastariam as minúsculas e permanentes gotas da chuva.
A tarde também já fora fria, de céu plúmbeo e o nevoeiro esbatido, cinzento e em farrapas não me permitiu, nesse dia, vislumbrar o horizonte longínquo dos cumes nevados da serra em frente, tão longe e tão perto.
O ribeiro, até há poucos dias remansoso regato que, ledo, descia da serra de cá, ressoa agora com os lançamentos das suas águas, em avalanche, contra as muralhas construídas fraga sobre fraga, pelos nossos ancestrais, ciclópicos, para defender as suas magras e parcas nesgas de terra, onde mal semeiam uns poucos grãos de milho, com igual técnica de há dois séculos e onde as videiras de “catoba”, qual ramos de figuras dantescas, nuas, se sustêm.
Tudo barulheia num instante. Um som sobressai aos outros e depois outro; todos, alternadamente, por sua vez.

E os meus olhos fitam agora o lume de colorações indefiníveis em que o negrume da acha ainda não queimada contrasta com o creme do cerne cru ou o sujo de terra daquele pedaço que ainda parece viver.
A branquidão da cinza que circunda o negro do fumo é a auréola da chama avermelhada, amarelada, sei lá!, mas mais clara que a madeira que arde e se abre aqui e ali em crateras que avisam da existência do que é triste.
Algumas pequenas pedras de carvão, pretas e ranhurosas, patenteiam o luto de alguma coisa que morreu.
A chama que vive é a filha da que já foi. E esta mesma é a que deixou o próprio luto.

Pelas nesgas da lousaria preta que cobre, como chapéu-telhado, esta casa já tão vivida e sofrida, entra de repente uma lufada forte daquele vento que faz prever desgraças, assenhoreando-se das intensidades de todos os barulhos; e a luz minguada da candeia de azeite é como que transportada ao colo do vento através dos interstícios das paredes construídas, em granito, pedra sobre pedra, sem assentamento, sem cimento, que se desconhecia e sem barro sequer, que o não havia.

Mais profundo é o silêncio quanto mais barulhento e forte se mostra o vento. Actua incessante. Até o lume da lareira deixa de se ouvir.

Só o silêncio do barulho do vento e, de seguida, as soberbas bátegas da chuva, que corre estrepitosamente pelo lousedo escaroado e como que se derrama no lamaçal do caminho de pé e carro de vacas.

Nem estradas nem luz eléctrica, nem telefones, nem bois. Destes, só um: o montador da freguesia que as cobre quando alguma não aparece já prenha doutras bandas, para com as suas crias, proporcionar a busca dum novo ramo genealógico, que dentro em breve se confundirá.

Penso nesta aldeia, nestes campos, nesta terra feita de heróis desconhecidos, sempre ignorados, soberbos em façanhas e tão humildes; medito e imagino a minha voz fina de criança a ecoar pelos vales e pelas grutas das fragas e a voz da minha alma, sempre contida, silenciosa, a gritar agora mais alto que o pensamento e a penetrar nas penumbras do passado ao encontro de histórias de fadas, de mouras encantadas, dos potes de barro cheios de libras de ouro, dos amores e tragédias atrás de cada pedra tosca da parede deste castelo escuro que, agora, resplandece fascinante, na brancura da neve que já caiu, quando os relâmpagos intermitentes o começam a iluminar, fazendo-o assemelhar-se a uma enorme árvore de Natal, nesta noite em que Deus nasceu.
As folhas, as derradeiras folhas, dos carvalhos e dos castanheiros seculares acabaram agora, certamente, por cair.
Foram vencidas na luta com o adversário que por vezes vence as vergônteas onde nasceram, as pernadas, os ramos, os troncos e até as raízes.

Também o seu barulho, da sua passagem, sinto: barulho suave de folhas secas que se vêm agora juntar aos montes de ramos de carvalhiços e às urzes e giestas já secas e que são a energia e o calor que aquece os corpos dos pobres, que são todos, quer no Verão quer no Inverno e que os aguenta, não os deixando morrer de frio nem de fastio.

O castelo brilha agora em mil cores indizíveis, sob o efeito dos relâmpagos nas estalactites múltiplas de sincelo suspensas do beirado das lousas, antes negras.

Sinto-me um desses pobres. O mais pobre de todos porque estou em solidão.

Os outros desconhecem o mundo para além daquelas serras. Mas sinto-me feliz:
Imagino-me herói também, soberbo e humilde. Num ápice, porém, sinto-me pequeno, mesquinho, porque o não sou... só o imagino ser.

A minha angústia adensa-se mais e mais. Não a consigo já conter. Não consigo ser o que gostaria de ser... .

O meu pensamento evolui e revolui. Volto à realidade.

O vento afinal amainou. As folhas grudaram-se à lama e à lenha que aguarda.
A luz está acesa na candeia.
Mas a fogueira já não existe. O lume finou-se. As chamas já não crepitam. As chispas, como estrelas luxuriantes, já não se locomovem. As últimas brasas escureceram. Predomina o luto do carvão que restou, coberto pela brancura da cinza.
Levanto-me e deito-me.

Quero amanhã ter forças para redimir-me. Para merecer aqueles antepassados que construíram com as suas mãos em sangue aquela casa tosca, aquelas muralhas sustentadoras da terra, que plantaram aquelas árvores gigantescas e prolíferas que sempre admiro e cumprimento.

Foi este o Natal solitário, da minha homenagem que passei vivendo-o à lareira numa certa noite de neve a pensar e a olhar o crepitar e as chispas do lume que me aqueceu;

Natal dum ano d.C. qualquer que já não lembro...

* * * * *


Feliz Natal para ti Amigo(a), este de 2006, te deseja o Arménio Vasconcelos*

* Presidente do Elos Clube de Leiria